Letras de Fados

A

A Rosa da Madragoa

A Rosa da Madragoa
Enche a canastra na Praça
Vem para a rua, apregoa
Acorda meia Lisboa
Que sorri quando ela passa

Sobe escadas, divertida
Numa alegria que alastra
Baila-lhe a saia garrida
Não lhe pesa a cruz da vida
Pesa-lhe mais a canastra

Tem um rapaz de quem gosta
Mas que não lhe dá cuidado
Mas se ouve alguma proposta
Atira cada resposta
Que o deixa de cara ao lado

Á noite, ali p'la Esperança
Ela que veio de Estarreja
Baila, canta, pula e dança
No seu vira que não cansa
Por mais virado que seja

Se p'la sombra das esquinas
A sua voz atordoa
Sabem as outras varinas
Quando passa pelas
Trinas A Rosa da Madragoa


A Viela


Fui de viela em viela
Numa delas dei com ela
E quedei-me enfeitiçado
Sob a luz dum candeeiro
Estava ali o Fado inteiro
Pois toda ela era fado
Arvorei um ar gingão

Um certo ar fadistão
Que qualquer homem assume
Pois confesso que aguardei
Quando por ela passei
O convite do costume

Em vez disso no entanto
No seu rosto só vi pranto
Só vi desgosto e descrença
Fui-me embora amargurado
Era fado mas o fado
Não é sempre o que se pensa

Ainda recordo agora
A visão que ao ir-me embora
Guardei da mulher perdida
A pena que me desgarra
Só me lembra uma guitarra
A chorar penas da vida


A casa da Mariquinhas


É numa rua bizarra
A casa da Mariquinhas
Tem na sala uma guitarra
Janelas com tabuinhas

Vive com muitas amigas
Aquela de quem vos falo
E não há maior regalo
De vida de raparigas
É doida pelas cantigas
Como no campo, a cigarra
Se canta o fado à guitarra
De comovida, até chora
A casa alegre onde mora
É numa rua bizarra

Para se tornar notada
Usa coisas esquesitas
Muitas rendas, muitas fitas
Lenços de cor variada
Pretendida e desejada
Altiva como as rainhas
Ri das muitas coitadinha
Que a censuram rudemente
Por verem cheia de gente
A casa da Mariquinhas

É de aparência singela
Mas muito mal mobilada
No fundo não vale nada
O tudo da casa dela
No vão de cada janela
Sobre a coluna, uma jarra
Colchas de chita com barra
Quadros de gosto magano
Em vez de ter um piano
Tem na sala uma guitarra

P'ra guardar o farto espólio
Um cofre forte comprou
E como o gaz acabou
Ilumina-se a petróleo
Limpa as mobílias com óleo
De amêndoa doce, e mesquinhas
Pasmam de fronte as vizinhas
P'ra ver o que lá se passa
Mas ela tem por pirraça
Janelas com tabuinhas


A Cruz


Aquela cruz de pau-santo,
Onde um Cristo de marfim
Se contorce em agonia,
Faz-me lembrar tanto, tanto,
Outra cruz que trago em mim,
Outra cruz pesada e fria.

De mil rosas coloridas
Era o caminho sonhado
Que o teu olhar me mostrou;
Fizeram-se as rosas feridas,
E o caminho desolado
Num calvário se tornou.

O vento levou-me tudo
E a sua suave brisa
Tornou-se em dolorido pranto;
Consola-me, quedo e mudo,
Esse Cristo que agoniza
Na sua cruz de pau-santo.


A jura


Quando tu te foste embora
Jurei que desde essa hora
Não te voltava a amar
Foi uma jura sagrada
Aos pés da cruz levantada
Naquele sagrado altar

Mas mal essa jura louca
Saíra da minha boca
Já eu lhe tinha faltado
Pois desde logo senti
Que pensava só em ti
Nesse momento sagrado

E dessa cruz lá do alto
Senti num sobressalto
Uma voz a segredar
Nunca faças juras dessas
Pois p'ra faltar a promessas
Vale mais nunca jurar


A minha cor


Vi-te dum vermelho antigo
Trazias a minha cor
Meus olhos foram contigo
E alguém disse que era amor

Cor de sangue aveludado
Cor de seda ou de cetim
Cor de vinho ou de pecado
Foi a cor que viste em mim

De fadista só me viste
Um olhar estranho e sombrio
Não era ardente nem triste
Não era vago nem frio

Tua voz cor de cantiga
Espalhava de mãos cheias
Um sabor a raça antiga
Que salta nas minhas veias

Fosse sede ou fosse amor
Que importa o que foi enfim
Trazias a minha cor
Nada mais contou p'ra mim


A minha loucura


São de um verde acinzentado
Os olhos que ando à procura
Teria o vento levado
Esses pardais de telhado
Causa da minha loucura

Teria o vento do cume
Dessa montanha de amor
Num ataque de ciúme
Tirado a brasa do lume
E mudado a sua cor

Vestido de negro manto
Levado p'ra outro lado
Coberto de triste pranto
Roubado a todo o encanto
Desse verde acinzentado


A minha rua

(Camané)

Mudou muito a minha rua, quando o outono chegou
Deixou de se ver a lua, todo o transito parou
Muitas portas estão fechadas, já ninguém entra por elas
Não há roupas penduradas, nem há cravos nas janelas

Não há marujos na esquina, de manhã não há mercado
Nunca mais vi a varina, a namorar com o soldado
O padeiro foi-se embora, foi-se embora o professor
Na rua só passa agora, o abade e o doutor

O homem do realejo, nunca mais por lá passou
O Tejo já não o vejo, um grande prédio o tapou
O relógio da estação, marca as horas em atraso
E o menino do pião, anda a brincar ao acaso

A livraria fechou, a tasca tem outro dono
A minha rua mudou, quando chegou o outono
Há quem diga "ainda bem", está muito mais sossegada
Não se vê quase ninguém, e não se ouve quase nada
Eu vou-lhes dando razão, que lhes faça bom proveito
E só espero p'lo verão, p'ra pôr a rua a meu jeito


A minha rua

(Mª do Rosário Bettencourt)

Cá p'ra mim, a minha rua
É um risonho canteiro
Tem gatos miando à Lua
Nos telhados em Janeiro

Tudo ali é português
Tudo lá vive contente
Vive o pobre e o burguês
É pequenina talvez
Mas cabe lá toda a gente

Refrão

Melhor eu nunca vi
Do que a rua onde nasci
Rua pobrezinha
Mas tem uma graça infinda
É humilde, qual aldeia
Embora digam que é feia
Cá p'ra mim, é a mais linda

Não há ódio, nem maldade
Tudo ali é singeleza
Não pode haver na cidade
Rua assim mais portuguesa

Nada há que seja novo
Nessa rua da gentalha
Ali canto e me comovo
Pois é a rua do povo
Que labuta e que trabalha

A minha rua
(Tina Santos)

Minha rua é certamente

Igual a tantas que há na cidade
Mas gosto daquela gente
Que não conhece o que é vaidade
Outras ruas elegantes, eu sei que há!
Mas o seu jeito bairrista, qual será?
Tem um ar de felicidade
Porque a maldade não mora lá


Refrão

A minha rua é toda ela
Uma aguarela para um pintor
Na minha rua toda humildade
Vive a saudade na casa do amor

Se bate à porta a tristeza
Como não quero nada com ela
Pode entrar, mas com certeza
Entra p'la porta, sai p'la janela

Surge uma cantiga e depois então
Enche a rua toda, é como um pregão
No bater duma chinela
Bate atrás dela, um coração 

A minha sina é cantar

A minha sina é cantar
O fado pelas vielas
E ver abrir as janelas
À noite de par em par


Ser fadista é o meu fado,
Vaguear de porta em porta,
Dedilhar a horas mortas
A guitarra em tom magoado


Há quem diga com desdém
Que é tolice, que é loucura,
Andar assim à procura
Do valor que o fado tem…


Mas que posso mais fazer?
Tenho o destino marcado,
Ser fadista é o meu fado,
E fadista hei-de morrer.


Às vezes penso em mudar,
Em viver doutra maneira
Ao calor duma lareira
Ou no sossego do lar…


Não consigo, não atino,
Logo que oiço uma guitarra
Volto p'rá vida de farra,
Pois é este o meu destino.


Com a guitarra a meu lado
A trinar em tom plangente,
Vivo assim, vivo contente,
Ser fadista é o meu fado.


A moda das tranças pretas


Como era linda com seu ar namoradeiro
'té lhe chamavam menina das tranças pretas
Pelo Chiado caminhava o dia inteiro
Apregoando raminhos de violetas


E as raparigas da alta roda que passavam
Ficavam tristes a pensar no seu cabelo
Quando ela olhava com vergonha disfarçavam
E pouco a pouco todas deixaram crescê-lo


Passaram dias e as meninas do Chiado
Usavam tranças enfeitadas com violetas
Todas gostavam do seu novo penteado
E assim nasceu a moda das tranças pretas


Da violeteira já ninguém hoje tem esperança
Deixou saudades foi-se embora e à tardinha
Está o Chiado carregado de mil tranças


Mas tranças pretas ninguém tem como ela tinha


Aguarela de Cascais


O mar beija a minha terra
Ao fundo abruma-se a serra
Aqui, ali e pinhais
O Sol é mais luminoso
O luar é mais formoso
E as estrelas brilham mais


Nos jardins multicolores
Flores, flores, tantas flores
Formam um quadro irreal
Maravilhoso cenário
Digno dum conto lendário
Dum país oriental


Praias de areia doirada
Boca do Inferno e Parada
O Guincho, a Guia o Mozelo
O Parque da Gandarinha
Santa Marta e a Marinha
São prendas que Deus lhe deu


Não esquecendo a singeleza
Do Chafariz da Marquesa
E da Praia da Rainha
Dos Pescadores a Capela
E a linda Cidadela
Tão famosa e já velhinha


Gaivotas esvoaçando
Os barquitos vão içando
Na remansosa Baía
Enquanto o mar de mansinho
Vai segredando baixinho
Qualquer coisa à Penedia


O meu cantinho risonho
É uma imagem de sonho
Que não se apaga jamais
Pesadelo que inebria
De perturbante magia
És bem um sonho Cascais


Aguarela fadista


Tu levas o teu xaile, eu visto uma samarra

E vamos de abalada, aqui aos arredores
Bater o fado antigo, ao som duma guitarra
E beber água-pé, numa adega de Loures


Quero levar também, calça à boca de sino
Chapéu à masantino, uma camisa branca
E vamos de manhã, os dois muito cedinho
Assistir à chegada do gado a Vila Franca

À tarde na corrida, a praça engalanada
Sob um sol escaldante, que p’la arena se espalha
Hás-de ver um fidalgo, sobre a sua montada
Altivo e destemido, lidar toiros do Palha

Há noite num retiro, havemos de cantar
Um fado rigoroso, o mais castiço fado
E em quadras de improviso, havemos de ir tocar
Os tempos que lá vão, respeitando o passado

Ai Mouraria


Ai Mouraria
Da velha Rua da Palma
Onde eu um dia
Deixei presa a minha alma


Por ter passado
Mesmo ao meu lado
Certo fadista
De cor morena
Boca pequena
E olhar trocista


Ai Mouraria
Do homem do meu encanto
Que me mentia
Mas que eu adorava tanto


Amor que o vento
Como um lamento
Levou consigo
Mas que 'inda agora
E a toda a hora trago comigo


Ai Mouraria
Dos rouxinóis nos beirais
Dos vestidos cor de rosa
Dos pregões tradicionais


Ai Mouraria
Das procissões a passar
Da Severa, em voz saudosa
Na guitarra a soluçar


Amigo João


Ó meu amigo João
Em que terras te perdeste
Se por nada lá morreste
Meu amigo, meu irmão


De nascença duvidosa
Proibiram a tua infância
Transformaram-te em distância
Como braços de alcançar
Foste folha a flutuar
Arrastada p'la corrente
E o teu sangue foi semente
Dos cifrões doutro lugar

Gostavas de ouvir cantar
As modas da nossa terra
E as verdades que ela encerra
No seu jeito popular
Teu corpo de tudo dar
Corre nas veias do mundo
Imenso, fértil, fecundo
Com força de terra e mar


Ponho aqui o recordar
Da agrura da tua morte
Por sobre sangue a gritar
Que não foi azar nem sorte
A força do vento norte
Levou teu grito na mão
Meu amigo, meu irmão

Quem forçou a tua sorte

Antigamente


Antigamente,
Era coito a Mouraria
Daquela gente
Condenada à revelia
E o fado ameno
Canção das mais portuguesas
Era o veneno
P'ra lhes matar as tristezas

E a Mouraria
Mãe do fado doutras eras
Que foi ninho de Severas
Que foi bairro turbulento
Perdeu agora
Todo o aspecto de galdéria
Está mais limpa, está mais séria
Mais fadista cem por cento

Adeus tipóias
Com pilecas e guizeiras
Adeus rambóias
E cafés de camareiras
Nada mais resta
Da Moirama que deu brado
Do que a funesta
Lembrança do seu passado

E a Mouraria
Que perdeu em tempos idos
A nobreza dos sentidos
E o poder de uma virtude
Salvou ainda
Toda a graça que ela tinha
Agarrada à capelinha
Da Senhora da Saúde

Ao Deus dará


Quando p'la primeira vez, ouvi
Uma guitarra a rezar por nós,
Porque sou um português, sofri;
E a timidez ali,
Prendeu-me a voz!

Quem ficou olhando o sol, não vê
Nem distingue o próprio céu do mar!
Quem não tem amor e fé, não crê!
Pois eu não sei porquê,
Pus-me a cantar!

Tudo o que o fado tem,
É de um capricho tal,
E quando é visto bem,
É conhecido mal!
Tem feito coisas tais...
Sei lá o que ele fez!
Até lhe agrada mais
Ser português!
Feito um boémio o vi;
Foi um fidalgo já;
E tem andado aí
Ao Deus dará!

Doutra vez, quando escutei sem q'rer,
A guitarra a soluçar d'amor
Eu senti o que não sei dizer:
Um misto de prazer,
De mágoa e dor!

Quem já sabe o que é amar alguém,
E esse alguém nos esqueceu por fim,
Já sofreu o mais cruel desdém,
Tem que gemer também,
Porque é assim!!

Aquela Maria


Maria da Conceição
Vi-te ontem na procissão
Mas duvidei do que via
Pois quando p'ra ti olhei
Olhei logo e reparei
Que toda a gente sorria

Maria da Conceição
Ou tu perdeste a razão
Ou então foi bruxaria
Um chapéu nessa cabeça
Mas tu queres que eu endoideça
Oh pobre, pobre Maria

Calça a chinelinha, calça
Põe teu lenço de Alcobaça
E a saia de flanela
Põe teu xaile de tricana
Pois tu és ribatejana
Pois tu Maria és aquela
Criada com essa aragem
Que faz a mulher formosa
E em paisagem bravia
Nunca pode ir bem Maria
Esse chapéu, essa rosa

Maria da Conceição
Sai-me já da procissão
Olha que Nosso Senhor
Sendo embora de madeira
Ao ver-te dessa maneira
Pode fugir do andor

Volta depois sem vaidade
Prefere a simplicidade
Numa vida sem mentira
Sem pose e sem presunção
Maria da Conceição
De Vila Franca de Xira

Aquele adeus


Tudo acabou nesse adeus
Em que vi os olhos teus
Partirem p'ra outro lado
Sonhámos tanto e depois
O que ficou de nós dois
Foi um pouco do passado

Quantos fados te cantei
Quantos poemas rasguei
Por serem feitos de ti
Esqueci-me de tantos dias
Nas promessas que fazias
Outro fado descobri

Já é tarde meu amor
O poente perde a cor
E não te vejo voltar
Co' a noite vem a saudade
Mesmo longe és a verdade
Que ponho no meu cantar

As minhas penas


Desde ontem que te não vejo
E o meu pobre coração
Não descansa um só momento
Sabes lá quanto desejo
E quanta recordação
Vivem no meu pensamento

Há poucas horas apenas
Que de mim te despediste
E me deixaste a pensar
Hora a hora as minhas penas
Me vão tornando mais triste
Pois não te vejo voltar

Meu coração adivinha
Que não mais voltas aqui
Que não mais te torno a ver
A culpa foi toda minha
Em me prender tanto a ti
E não te saber prender

Atalhos proibidos


Há fado na minh’alma por ti louca
Neste anseio de choro que me invade
E que deixa ficar na minha boca
O travo tão amargo da saudade

Há fado nesta lágrima sentida
Que brinca no meu riso amargurado
E vai caír teimosa e dolorida
Sobre as notas vadias do meu fado

Há fado se não dormes no meu peito
No tanger das guitarras em quebranto
Há fado no meu canto contrafeito
Pois não vejo aqui, enquanto canto

Há fado nos meus passos descabidos
No meu bater à porta sempre errada
Quem anda por atalhos proibidos

Pode chegar ao fim e não ter nada


Avé Maria Fadista


Avé Maria sagrada
Cheia de graça divina
Oração tão pequenina
Duma beleza elevada

Nosso Senhor é convosco
Bendita sois vós, Maria
Nasceu vosso filho um dia
Num palheiro humilde e tosco

Entre as mulheres bendita
Bendito é o fruto, a luz
Do vosso ventre, Jesus
Amor e graça infinita

Santa Maria das Dores
Mãe de Deus, se fôr pecado
Tocar e cantar o fado
Rogais por nós pecadores

Nenhum fadista tem sorte
Rogai por nós, Virgem Mãe
Agora, sempre e também
Na hora da nossa morte

Azenha velhinha


Aquela azenha velhinha
Na margem da ribeirinha
Que por vales serpenteia
Foi testemunha impassível
Da tragédia mais horrível
Que houvera na minha aldeia

Naquela noite de Inverno
O céu parecia um inferno
Estavam os astros em guerra
E a ribeira mal sustinha
A grande cheia que vinha
Pelas vertentes da serra

Vendo a ribeira a subir
O moleiro quis fugir
Levando o filho nos braços
Pela ponte carcomida
Já velhinha e ressequida
A desfazer-se em pedaços

Mas ai, a ponte quebrou-se
E o moleiro como fosse
Na cheia da ribeirinha
Levou o filho consigo
E nunca mais moeu trigo
Aquela azenha velhinha

B

Bailado das folhas

Á mercê dum vento brando
Bailam rosas nos vergéis
As Marias vão bailando
Enquanto vário Manéis
Nos armónios vão tocando

Tudo baila e tudo dança
Nosso destino é bailar
E até mesmo a doce esperança
Dum lindo amor se alcançar
De bailar nunca se cansa

Baila o nome de Jesus
Em milhões de lábios crentes
E em bailado que seduz
As falenas inocentes
Bailam à roda da luz

E a folhagem ressequida
Baila envolvida em poeira
E com a razão perdida
Há quem leve a vida inteira
A bailar com a própria vida

Tudo baila, tudo dança
Nosso destino é bailar
E até mesmo a doce esperança
De um lindo amor se alcançar
De bailar nunca se cansa

Balada das mãos ausentes


Este poema, quisera que fosse grito
Para lá do infinito, além do tempo
Que o próprio vento, levasse em seu rumor
Como mensagem de amor, este poema
Que a minha voz, fosse a voz da própria terra
Ecoando de serra em serra, gritos de paz
Gestos de pão, sagrados são, gestos de amor
Por cada um nasce uma flor, em cada mão

Semideuses conquistam a Lua
Outros planetas, todo o universo
E na terra, tu criança nua
Que triste vegetas, sem pão e sem berço
E às mãos que trocaram arados
E gestos sagrados, de redes e remos
Por gestos de morte, blasfemo
Gritarei no meu fado, o herói está errado

Quisera ser a força do mar revolto
Neste grito que ora solto, em alta voz
E que este canto, fosse a voz de todos vós
O pranto do vosso pranto, quisera ser
Para dizer: mãos sublimes, mãos ausentes
Na distância das sementes, voltem à terra
Ela vos quer, de novo no seio sagrado
Pois há lamentos de prado, na voz da terra


Boa noite solidão


Boa noite solidão
Vi entrar pela janela
O teu corpo de negrura
Quero dar-me à tua mão
Como a chama duma vela
Dá a mão à noite escura

Só tu sabes solidão
A angustia que trás a dor
Quando o amor a gente nega
Como quem perde a razão
Afogámos nosso amor
No orgulho que nos cega

Os teus dedos solidão
Despenteiam a saudade
Que ficou no lugar dela
Espalhas saudade p'lo chão
E contra a minha vontade
Lembras-me a vida com ela

Com o coração na mão
Vou pedir-te sem fingir
Que não me fales mais dela
Boa noite solidão
Agora quero dormir
Porque vou sonhar com ela

C

Caminhos da vida

Caminhos que caminhei
Tantas saudades me dás
Por saber que já não posso
Agora voltar atrás

Quando se é 'inda menino
Vive-se preso à ideia
Que o mundo que nos rodeia
É de quem é pequenino

A brincar com o destino
Não lembramos horas más
Se tudo o que nos apraz
Vive nos passos que dei
Caminhos que caminhei
Tantas saudades me dás

Tanto a vida nos seduz
Que em criança achamos graça
Até à nuvem que passa
P'ra roubar ao Sol a luz

Mas como a idade traduz
Tudo quanto ela é capaz
Vejo que ela me faz
Viver outro viver nosso
Por saber que já não posso
Agora voltar atrás


Caso arrumado


Não te vi, há quase um mês
Chegaste e mais uma vez
Vinhas bem acompanhado
Sentaste-te à minha mesa
Como quem tem a certeza
Que somos caso arrumado

Ela não me queria ouvir
Mas tu pediste a sorrir
O nosso fado preferido
Fiz-te a vontade, cantei
E quando à mesa voltei
Ela já tinha saido

Não é a primeira vez
Que começamos a três
Eu vou cantar e depois
O nosso fado que eu canto
É sempre remédio santo
Acabamos só nós dois

Eu sei que tu vais voltar
P’ra de novo utilizar
Um caso sem solução
Vou cantar o nosso fado
Fica o teu caso arrumado
O nosso caso é que não


Contemplo o que não vejo


Contemplo o que não vejo
É tarde, é quase escuro
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro

Por cima o céu é grande
Sinto árvores além
Embora o vento abrande
Há folhas em vaivém

Tudo é do outro lado
No que há e no que penso
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou
Não sinto, não sou triste
Mas triste é o que estou


Cor dos olhos


Dizem que os olhos leais
São os castanhos, pois bem
Conheço uns olhos fatais
Que são castanhos também

Olhos pretos, negra cruz
Quem o disse com certeza
Não vê que a noite sem luz
Também tem sua beleza

Olhos azuis falsidade
Errou quem isto escreveu
Nunca pode haver maldade
Nos olhos da cor do céu

Nuns olhos verdes cautela
Ninguém se deixe embalar
Lembra o mar e a procela
É irmã gémea do mar

Não há resposta acertada
Que traduza bem a cor
Dos olhos da nossa amada
Se andamos cegos de amor

Cravos de São João


Quando a vi ela trazia
Bem juntinho ao coração
Como um grito de alegria
Um cravo de São João
Passou por mim apressada
Na primeira vez que a vi
Achei a moça engraçada
E nunca mais a esqueci

Ia bonita
No seu vestido de chita
Tinha uma graça esquisita
E um ar bem português
O meu olhar
Poisou nela como um beijo
E fiquei com o desejo
De a encontrar outra vez

Fez-me o destino a vontade
Novamente a encontrei
Mas p'ra dizer a verdade
Que diferente que eu a achei
Elegante no trajar
De luxo e ostentação
E uma orquídea no lugar
Do cravo de São João

Ia elegante
Num vestido extravagante
E tinha um ar petulante
Que cheirava a perdição
Naquela orquídea
Sua vida se resume
Porque perdeu o perfume
Do cravo de São João

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